Author: py5drb

Ubi eadem ratio ibi idem jus
(onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito) e
Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio
(onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir)

Para que se possa afirmar que determinado fato trata-se de uma infração penal, há que se proceder a sua verificação a partir de um conceito analítico. Vale dizer:

(…) c) analítico: é a concepção da ciência do direito, que não difere, na essência, do conceito formal. Trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito (culpabilidade). (…)[1]

Ainda:

O conceito analítico de crime procura, como sua própria denominação sugere, analisar os elementos ou característica que integram a infração penal, permitindo ao intérprete, após sua averiguação, concluir ou não pela sua prática. Assis Toledo, discorrendo sobre o tema, esclarece que, “substancialmente, o crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico-penais) protegidos. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime. E dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera três notas fundamentais do fato-crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável”.[2]

Tipicidade, em linhas gerias, refere-se a um modelo legal de comportamento. Ensinando-nos a doutrina que:

Tipicidade diz respeito à subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador, ou conforme preceitua Muñoz Conde, “é a adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal. (…) Entretanto, esse conceito de simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir pela tipicidade penal, uma que esta é formada pela conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante.[3]

Neste contexto, evidencia-se que não basta que a conduta humana praticada adéqüe-se a descrição formal do tipo penal incriminador (tipicidade formal), há, também, a necessidade de que o viole em sua acepção material.

E, “(…) A tipicidade material, a seu turno, que integra o conceito de tipicidade conglobante, seria o critério por meio do qual se afere a importância do bem no caso concreto, sendo o lugar apropriado para a análise do chamado princípio da insignificância”[4]

Uma conduta, apesar de formalmente típica, não pode ser considerada materialmente típica se não ofender significativamente o bem jurídico penalmente tutelado. E, nesse sentido:

O princípio da insignificância tem o condão de afastar a tipicidade material do fato, tendo como vetores para sua incidência: a) a mínima ofensividade daconduta, (b) a ausência de periculosidade social da ação, (c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica.

Diante disso, descaracterizando-se o aspecto material do tipo penal, a conduta passa a ser atípica, o que impõe a absolvição do réu, não lhe restando consequência penal alguma. É exatamente esse aspecto relevante, que às vezes gera divergência entre o STF e o STJ, que acertadamente foi dirimido pelo Ministro Celso de Mello.[5]

Arrematando:

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – TENTATIVA DE FURTO SIMPLES (CP, ART. 155, “CAPUT”) DE CINCO BARRAS DE CHOCOLATE – “RES FURTIVA” NO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 20,00 (EQUIVALENTE A 4,3% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – “HABEAS CORPUS” CONCEDIDO PARA ABSOLVER O PACIENTE. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. – O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada esta na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Precedentes. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O FATO INSIGNIFICANTE, PORQUE DESTITUÍDO DE TIPICIDADE PENAL, IMPORTA EM ABSOLVIÇÃO CRIMINAL DO RÉU. – A aplicação do princípio da insignificância, por excluir a própria tipicidade material da conduta atribuída ao agente, importa, necessariamente, na absolvição penal do réu (CPP, art. 386, III), eis que o fato insignificante, por ser atípico, não se reveste de relevo jurídicopenal. Precedentes. (HC 98152, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/05/2009, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-03 PP-00584 RF v. 105, n. 401, 2009, p. 594-602 LEXSTF v. 31, n. 366, 2009, p. 416-429) (negritou-se)

Introduzidos estes conceitos, necessário contextualizá-los dentro da realidade estabelecida pela Lei n.º 10.826/03 – Estatuto do Desarmamento.

É inevitável que o ponto de partida seja a identificação do bem jurídico tutelado pela Lei n.º 10.826/03.

E, o texto de encaminhamento do Projeto de Lei do Senado n.º 292, de 1999 – ESTATUTO DO DESARMAMENTO, registra a justificação seguinte:

A onda de violência que vem se avolumando em nosso país, fartamente noticiada,tem como uma de suas principais causas a facilidade de obtenção e uso de armas de fogo. O Estado não pode se eximir de seu dever de manter a segurança pública, reduzindo este perigo a um grau controlável. Conforme o projeto que ora apresento, o uso de arma de fogo passa a ser objeto de estrito controle estatal, sendo permitido apenas em circunstâncias excepcionais. Sala das Sessões, 4 de maio de 1999. – Senador Gerson Camata.(negritou-se e grifou-se)

Perceptível, portanto, que a intenção do legislador é a proteção do bem jurídico segurança pública ou incolumidade pública, que pode ser conceituado:

A incolumidade pública significa evitar o perigo ou risco coletivo, tem relação com a garantia de bem-estar e segurança de pessoas indeterminadas ou de bens diante de situações que possam causar ameaça de danos.[6]

Deduz-se, então, que a intenção da legislação é, com a criminalização do porte de armas de fogo, pôr a salvo o bem-estar e a segurança de toda a coletividade contra a ameaça de dano que uma pessoa, portando uma arma de fogo, representa.

Não é demais, neste ponto, lembrar que uma arma de fogo não passa de um objeto. O perigo não está em si, mas no uso que se lhe dá. Assim como há perigo ínsito no uso de uma faca, de uma foice, de um equipamento elétrico, de uma piscina, de um automóvel etc.

Portar significa “trazer consigo”. No caso da arma de fogo, dá a ideia de tê-la consigo em qualquer lugar e em condições que permitam o seu uso imediato.

Então, resta uma pergunta a ser respondida: qual o risco que um indivíduo de comprovada idoneidade, com ocupação lícita e residência certa, tecnicamente capacitado e psicologicamente apto ao manuseio de armas de fogo[7], representa para a segurança/incolumidade pública ao portar a sua arma?

E a resposta racional a esta pergunta parece ser apenas uma: nenhum risco significativo.

Se o risco não está no objeto em si, mas no uso que se lhe dá e na pessoa que o opera, e, em se tratando de armas de fogo, por oportunidade da aquisição do objeto já se perscrutou a vida pregressa e o próprio indivíduo, entendendo-o capaz de possuí-lo, desarrazoado sustentar que representa perigo para a segurança pública.

Pois, caso representasse perigo para a segurança pública, sequer deveria ter sido autorizado a adquirir a arma de fogo.

Ainda, não há sentido ou lógica em sustentar que em sua casa ou em seu local de trabalho – onde se dá a posse legal da arma de fogo – o conjunto possuidor/arma de fogo não representa nenhum perigo à segurança pública. Porém, em qualquer outro lugar, representa.

A jurisprudência dos tribunais de superposição, lenta, porém, gradativamente, está reconhecendo tal realidade, qual seja: que a posse ou o porte de materiais descritos na Lei n. 10.826/03, a depender da situação, não representa risco à incolumidade pública.

Vale dizer: analisando as circunstâncias do caso concreto, admite-se que a conduta praticada não possui ofensividade suficiente a provocar significativa lesão à segurança coletiva.

Toma-se como exemplo os julgados seguintes:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 8 MUNIÇÕES. AUSÊNCIA DE ARMAS APTAS PARA DISPARAR. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. O princípio da insignificância é parâmetro utilizado para interpretação da norma penal incriminadora, buscando evitar que o instrumento repressivo estatal persiga condutas que gerem lesões inexpressivas ao bem jurídico tutelado ou, ainda, sequer lhe causem ameaça.
2. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se ao Supremo Tribunal Federal, tem entendido pela possibilidade da aplicação do princípio da insignificância aos crimes previstos na Lei 10.826/03, a despeito de serem delitos de mera conduta, afastando, assim, a tipicidade material da conduta, quando evidenciada flagrante desproporcionalidade da resposta penal.
3. Ainda que formalmente típica, a apreensão de 8 munições na gaveta do quarto da ré não é capaz de lesionar ou mesmo ameaçar o bem jurídico tutelado, mormente porque ausente qualquer tipo de armamento capaz de deflagrar os projéteis encontrados em seu poder.
4. Recurso especial provido.(REsp 1735871/AM, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado
em 12/06/2018, DJe 22/06/2018)

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI 10.826/2003). POSSE IRREGULAR DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE DA CONDUTA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ATIPICIDADE DOS FATOS. RECURSO PROVIDO.
I – Recorrente que guardava no interior de sua residência uma munição de uso permitido, calibre 22.
II – Conduta formalmente típica, nos termos do art. 12 da Lei 10.826/2003.
III – Inexistência de potencialidade lesiva da munição apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos.
IV – Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal em relação ao delito descrito no art. 12 da Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).
(RHC 143449, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 26/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-231 DIVULG 06-10-2017 PUBLIC 09-10-2017)

HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 16 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI 10.826/2003). PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO.
AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE DA CONDUTA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ATIPICIDADE DOS FATOS. ORDEM CONCEDIDA.
I – Paciente que guardava no interior de sua residência uma munição de uso
restrito, calibre 9mm.
II – Conduta formalmente típica, nos termos do art. 16 da Lei 10.826/2003.
III – Inexistência de potencialidade lesiva da munição apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos.
IV – Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal.
(HC 132876, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 16/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-116 DIVULG 01-06-2017 PUBLIC 02-06-2017)

Partindo da ideia inserta em tais decisões é que se invocam os brocardos latinos ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito) e ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir) para afirmar que onde há a mesma razão de ser – isto é, em determinadas situações armas ou munições não representam perigo à segurança pública – deve prevalecer a mesma razão de decidir – ou seja: deve-se reconhecer a inexistência de crime, em razão da atipicidade material da conduta –.

Os citados julgados, sem dúvida, orientam e abrem caminho para uma interpretação mais racional do Estatuto do Desarmamento, criminalizando o porte de arma de fogo por aqueles que representam, efetivamente, risco à segurança do corpo coletivo.

Em conclusão, tem-se que o porte de arma de fogo por pessoa que atende aos requisitos exigidos pela legislação para a sua aquisição não pode ser considerada conduta materialmente típica e, como via de consequência, crime tipificado no artigo 14 ou no artigo 16 da Lei n.º 10.826/03, por lhe faltar ofensividade e não vulnerar de forma significativa o bem jurídico – segurança pública/incolumidade pública – protegido pela norma penal (Lei n.º 10.826/03).

Evidentemente que as circunstâncias do caso concreto e o bom senso do operador do direito/agente do Estado é que deverão orientar a aplicação da lei.

[1]Nucci, Guilherme de Souza. Código penal comentado. – 12. ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 129.
[2] Greco, Rogério. Código penal: comentado. – 10. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2016. p. 34/35.
[3] Greco, Rogério. Código penal: comentado. – 10. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2016. p. 39.
[4] Greco, Rogério. Código penal: comentado. – 10. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2016. p. 39.
[5] GOMES, Luiz Flávio. DONATI, Patricia. CHRISTÓFARO, Danilo. Princípio da insignificância: atipicidade material não se confunde com exclusão da punibilidade. Disponível em http://www.lfg.com.br 04 junho. 2009.
[6] Disponível in: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/direito-facil/edicao-semanal/incolumidadepublica>. Acessado em 23/07/2018.
[7] Requisitos exigidos pelo artigo 4.º da Lei n.º 10.826/03 para a aquisição de arma de fogo.

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