Victor Lonardeli
Instrutor LEAD de Armamento e Tiro

Respondo hoje uma pergunta encaminhada pelo internauta Samuel Bolt dos Aflitos, de Serra da Saudade, MG:

Dr. Victor: o que você acha dessa turma que vive dando interpretações expansivas às regras de armamento e tiro e que acabam dificultando ainda mais e enchendo de dúvidas a vida dos CAC’s?

Olha Samuel, a vida do CAC ou de qualquer cidadão honesto que queira ter uma arma legal no Brasil não é nada fácil, e eu conheço bem esse tipinho que você está falando. Normalmente circula pelas rodas de bate papo dos clubes de tiro, e chega com ares de erudição soltando um monte de regras sobre manuseio, transporte, guarda e outras, que no fim das contas só atrapalham a nossa vida.

A gente já tem um preconceito gigante em relação às armas de forma geral, uma má vontade de juízes e autoridades para tudo que se relaciona com armas, o Exército enchendo o ordenamento de portarias que só atrapalham, isso sem contar com os preços de armas e munições nesse país que são um estupro.

Agora, para complicar um pouquinho mais todo esse processo, já que toda essa dificuldade não parece ser suficiente, as pessoas colocam chifre em cabeça de cavalo e criam ainda mais dificuldades, onde elas simplesmente não existem.

Costumo chamar essa turma de “elementos complicadores”. Com certeza todos nós conhecemos vários deles, a internet é terreno fértil. O elemento complicador é aquele sujeito que não pode ver algo funcionando de maneira normal: se o sol nasce todo dia no leste e se põe no oeste, tem algo errado ai! Ele adora um controle, é um maníaco de planilhas e não dá um passo sequer se não for autorizado por uma norma permissiva explícita, ignorando o fato de que uma norma que proíbe, permite todos os outros comportamentos, exceto aquele proibido.

Ai você meu amigo, que quer apenas ter o seu revólver ou pistola em casa, poder dar uns tiros uma vez ou outra, e dormir sossegado com a certeza de que tem o mínimo para proteger a si e aos seus familiares, é atropelado pelas mais diversas teorias sobre o que pode, o que não pode e como as coisas devem ser feitas, em se tratando de armas de fogo. A lógica e o bom senso, não são suficientes para os elementos complicadores, que adicionam uma generosa dose de positivismo neurótico à interpretação das normas, e aí meu amigo, vem de tudo!

Os problemas criados pelos elementos complicadores são inúmeros:

Qual seria o conceito jurídico de aglomeração?

Quem tem arma SINARM pode recolher e guardar estojos de treinamento que usa? Estojos não são PCE?

GT da PF possibilita levar além da arma a munição? A IN 201 só fala em arma!

Essas e muitas outras preocupações neuróticas são respondidas por especialistas que complicam ainda mais uma situação totalmente intrincada, situações que o bom senso e a lógica simples poderiam resolver. E não me refiro a nada de mais, senão aquela percepção do cidadão médio de que se ele se jogar de um prédio de 10 andares vai acabar morrendo.

Muitas vezes parece ser mais fácil um desarmamentista coerente compreender o ordenamento, do que um entusiasta das armas com essa visão complicadora, se é que existem desarmamentistas coerentes.

Meu irmão, vamos parar com isso… as coisas já estão bem difíceis para você querer inventar mais dificuldades.

Cumprir todos os requisitos legais para se ter uma arma no SIGMA ou SINARM já não é brincadeira, um porte na federal então é querer dar um berimbolo numa bigorna, e aí você quer me arrumar mais problemas???

E de todas essas “lendas” que vão se formando em torno da legislação de armamento e tiro, três delas são as campeãs, as ‘top trends’ do mundo das armas, e vamos falar sobre cada uma delas agora.

1ª. Transporte desmuniciado de armas e a finalidade

A questão aqui é saber se o CAC poderia transportar sua arma desmuniciada para outra finalidade que não seja competição ou treino.

Essa preocupação domina o mundo do tiro, e mais cedo ou mais tarde será discutida naquela rodinha de amigos do clube de tiro, e eu já adianto para vocês que a LEI não traz NADA restritivo a este respeito.

1º) A Lei nº 10.826/03, nos arts. 9ª e 24, ao criar a figura do porte de trânsito para CAC’s, não estabelece nenhum tipo de condicionante. No art. 9º possibilita ao exército CONCEDER o porte de trânsito. No art. 24 possibilita o exército AUTORIZAR e FISCALIZAR o porte de trânsito.

Embora o art. 9º remeta a concessão às disposições regulamentares, não podemos esquecer que ao falar em regulamento a Lei se refere ao decreto presidencial, previsto no art. 84 da CRFB/88 e não em portarias do exército, por exemplo.

E se a lei não cria nenhum tipo de condicionante, o decreto, que pelo texto constitucional deve se restringir a regular a fiel execução da lei, poderia?

Lógico que não!

2ª) O conceito de Porte de Trânsito contido no art. 3º do anexo I do Decreto nº 10.030/19, não traz NADA sobre finalidade, sendo que a redação é de 2021:

XII – porte de trânsito – direito previsto:
a) no § 3º do art. 5º do Decreto nº 9.846, de 25 de junho de 2019 , e nos art. 9º e art. 24 da Lei nº 10.826, de 2003 , concedido aos colecionadores, aos atiradores e aos caçadores registrados junto ao Comando do Exército para transitar com armas de fogo registradas em seus respectivos acervos, com os acessórios e munições necessários às práticas previstas nos art. 42, art. 52 e art. 55;

O dispositivo não estabelece que o transporte é destinado às práticas de coleção, tiro esportivo e caça (arts. 42, 52 e 55), apenas que além do transporte das armas, é autorizado o transporte de PCE’s que tenham as referidas finalidades.

3º) O art. 5º, §2º do Decreto nº 9.846/19, ao tratar sobre o transporte desmuniciado, também não menciona absolutamente nada sobre finalidade (a redação aqui também é de 2021).

Aí vem os inteligentinhos da internet e “extraem” do sentido geral do ordenamento que este direito deve estar relacionado a uma finalidade específica, e que não seria permitido transportar sua arma descarregada a menos que esteja dentro de uma finalidade de treino ou competição.

Logicamente, você não pode “guardar” sua arma no seu carro, a LEI não permite isso, mas se você quiser levar sua arma, p. ex., a um estande com a finalidade de mostrar a mesma a interessados em sua aquisição, ou, verificar se ela se adapta bem a determinado case ou bandoleira, ou ainda transportar a mesma de um endereço de guarda a outro, não há ilegalidade alguma nisso!

Lembrando que atualmente não é necessária a guia de tráfego para o transporte desmuniciado de armas.

Não ignoramos a disposição contida no art. 82, §2º do Decreto nº 10.030/19, que apontaria o transporte de PCE do tipo arma, munição e acessórios para as finalidades de “treinos, competições, manutenção, abate e demonstrações”, porém tanto o art. 3º do anexo I do Decreto nº 10.030/19 quanto o art. 5º, §2º do Decreto nº 9.846/19 não tem essa condicionante, sendo todos os dispositivos de 2021, do mesmo patamar hierárquico e com mesmo grau de especialidade, do que deve então prevalecer a norma mais favorável (lex favorabilis) em detrimento da norma restritiva/imperativa (lex odiosa).

Então vamos parar com essa coisa de “finalidade” que não está expressamente prevista na lei, e que não pode ser tão obtusa a ponto de transformar alguém que passou por uma miríade de dificuldades para adquirir uma arma e obter CR, CRAF, etc, em um criminoso, por ter levado uma arma desmuniciada em seu carro até a casa de um amigo. Não é esse o objetivo da lei.

2ª. Transporte de arma desmuniciada com carregadores cheios

Essa segunda lenda do tiro é uma derivação da primeira. O argumento é que a munição não poderia estar dentro dos carregadores da arma, ainda que a arma estivesse vazia.

O detalhe é que esse tipo de colocação vem sempre de alguém com ares de intelectual sobre o assunto, e que está dando um conselho aos demais “irmãos de tiro”, aquele toque para ajudar, e não te deixar cair numa roubada em caso de abordagem, coisa banal.

O art. 5º, §2º do Decreto nº 9.846/19, ao tratar sobre o transporte desmuniciado, estabelece que a arma deve estar desmuniciada, e a munição em “recipiente próprio”, separada das armas.

O art. 52-A do Decreto nº 10.030/19 (também com redação de 2021), não diz nada sobre essa questão do recipiente, apenas que a arma deve estar desmuniciada.

Carregadores, na sua maioria esmagadora nem são mais produtos controlados, e frise-se que os carregadores são “recipientes próprios” para transporte de munição, e o fato de um carregador estar municiado ao lado de uma arma, não a faz estar carregada!

Assim, considerando (i) a ausência de disposição em lei e o princípio da legalidade; (ii) o fato do art. 52-A do Decreto nº 10.030/19 e do art. 5º, §2º do Decreto nº 9.846/19 não criarem nenhum tipo de obrigatoriedade de os carregadores estarem vazios; (iii) o fato de que carregadores são recipientes adequados para o transporte de munição e que atualmente não são via de regra PCE’s; não vejo outra alternativa, senão classificar essa ideia como mais uma tosquisse do mundo das armas.

Veja que isso leva a um outro absurdo: os carregadores precisam estar vazios, pois seriam “uma parte da arma”, porém, jet loaders e speed loaders de revólveres poderiam estar cheios, desde que o tambor da arma estivesse vazio, já que não seriam parte da arma…

Não faz sentido!

3ª. Arma SIGMA e legitima defesa – Possibilidade de uma arma SIGMA ser deixada no local de guarda municiada

Com certeza essa falácia é a campeã nas rodinhas de conversas entre atiradores. É aquele sujeito chato que vem colocar minhoca na sua cabeça, para atormentar sua noite de sono, dizendo que como a sua arma é registrada no SIGMA, ela é destinada ao tiro desportivo e não deve ser usada na defesa pessoal, logo, precisa ser guardada desmuniciada, e que se você de fato quer uma arma para defesa pessoal, deve ter a mesma registrada no SINARM.

Nem vou me estender aqui sobre a questão de a legítima defesa estar relacionada à utilização de forma moderada dos meios disponíveis para repelir injusta agressão. Qualquer pessoa que consiga acessar a arma (incluindo até uma criança), não estará cometendo ilícito algum, tampouco o dono, se for para uso em legítima defesa, independentemente de ser registrada no SIGMA ou SINARM.

A questão seria sobre a possibilidade de se guardar a arma do acervo SIGMA municiada ou não.

Vamos começar pelo que temos de mais “radical” no que concerne ao uso da arma: a lei estabelece que o CAC pode se deslocar de sua casa até local de treinamento ou competições, com a arma municiada a pronto uso.

Só aí já aparece o absurdo da hipótese: você não pode ter sua arma municiada em casa, apenas quando estiver saindo de casa!

Pior ainda: o CAC pode andar pela rua com a arma carregada, e você quer me dizer que ele não pode manter a arma carregada dentro de casa???

Se tem um local onde a arma apresenta o menor potencial ofensivo para aquelas pessoas sensíveis que acreditam que armas disparam sozinhas por aí matando pessoas, é dentro da casa do dono! De novo um desarmamentista que não seja petulante, há de concordar!

Novamente chegamos a situações esdrúxulas, onde, p. ex., seria relevante questionar o quanto tempo antes da pessoa sair de casa, autorizaria ela a municiar a arma? Se você vai sair pela manhã, poderia deixar tudo preparado a noite antes de dormir? E se você municiar a arma e na porta ter uma dor de barriga? Precisa desmuniciar antes de ir no banheiro? E se não der tempo? Faz nas calças?

Vejam que esse tipo de discussão é tão obtusa que nos leva a debates completamente malucos.

Esse raciocínio não faz nenhum sentido, e mesmo que isso esteja escrito em alguma parte do emaranhado que são as normas de armamento e tiro, não há como emprestar a mínima viabilidade ao comando!

A defesa desse argumento passa pelo art. 8º da Lei nº 10.826/03, que remete os possuidores de armas a cumprirem o regulamento na guarda, indo para o art. 100 do Decreto nº 10.030/19 e depois para a Portaria nº 150/19 do exército, em seu anexo F, segundo o qual as armas do acervo SIGMA devem ser guardadas desmuniciadas.

Só aí já precisamos dar alguns pulos entre as normas, e nossa metodologia científica fica com uma base bem frágil. Esse pulo do art. 8º da Lei nº 10.826/03, que seria a base para justificar as normas de armazenagem de PCE’s para pessoas físicas é um tanto quanto questionável, pois uma simples leitura do artigo já mostra que ele trata, em princípio, de “entidades desportivas legalmente constituídas”[1].

O próximo passo seria o art. 100 do Regulamento do Decreto nº 10.030/19, mas esse dispositivo mostra que a pessoa física deve seguir as medidas:

  1. do próprio regulamento;
  2. de normas complementares;
  3. da legislação editada por órgão competente.

Ora, você querer me dizer que uma portaria do exército se encaixa em algum desses conceitos, é ignorar o princípio da legalidade previsto no art. 5º, II da CRFB/88. Portaria vale da porta para dentro, e não pode criar obrigações ou proibições ao administrado. Essa tarefa, em um Estado Democrático de Direito, é reservada à LEI.

Chega-se ao ponto de se falar que a permanência de uma arma do acervo SIGMA carregada caracterizaria um eventual crime de posse irregular de arma de fogo (art. 12 da Lei), que trata de você manter arma em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Não faz nenhum sentido!

  • É ridículo querer comparar alguém que tem uma arma ilegal com alguém que tem toda a documentação da arma, mas a “guardou” de maneira supostamente inadequada;
  • Quando a lei fala em “desacordo com determinação legal ou regulamentar” refere-se aos regulamentos do Poder Executivo, previstos no art. 84 da CRFB/88 e que tratam da FIEL execução de lei, e não de portarias do exército, que são editadas segundo as vontades e conveniências momentâneas do administrador.

Quando muito, a guarda do acervo de forma irregular poderia se caracterizar em uma infração administrativa, como os arts. 101 e 111 do Decreto nº 10.030/19 sinalizam:

Art. 111. São infrações administrativas às normas de fiscalização:
(…)
IX – deixar de cumprir normas de segurança ao lidar com PCE;

Finalmente precisamos apelar ao bom senso para fechar a linha de raciocínio deste tópico: não se está falando aqui que um CAC deveria guardar todo o seu acervo municiado, mas se a legislação permite que o mesmo porte uma arma municiada para os deslocamentos a locais de treino ou competição, no mínimo esta única arma poderia estar municiada em seu local de guarda.

Então essas são as principais falácias envolvendo a legislação de armamento e tiro no Brasil, e espero que a partir de agora você possa deixar de ouvir calado esses conselhos e refute essas ideias que só dificultam ainda mais a vida de todos.

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